sábado, 1 de março de 2014

Traição

 Venho-me apercebendo que recebi umas tantas opiniões falsas como sendo verdadeiras e de que aquilo que desde então fundei sobre princípios tão mal assegurados só podia ser muito duvidoso e incerto; de modo que é necessário eu desfazer-me de todas as opiniões que havia recebido e formado até então na minha crença, e recomeçar tudo de novo a partir de novos fundamentos. Aplicar-me-ei seriamente e com toda a liberdade a destruir genericamente todas as minhas antigas opiniões. Ciente, que o desmoronamento dos fundamentos acarreta necessariamente o resto do edifício, começarei por atacar os princípios em que todas as minhas antigas opiniões se apoiavam. Fica uma certeza: os sentidos são enganadores e é do domínio da prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez. Todavia, embora os sentidos por vezes nos enganem, no tocante a coisas pouco sensíveis e bastante afastadas encontram-se porventura muitas outras de que não se pode razoavelmente duvidar, embora conheçamos pelo seu meio. 

 Com o receio de um dia deixar ser dominado pelo cérebro perturbado e ofuscado que continuamente nos assegura que somos reis, quando na verdade, somos paupérrimos. Pensando com cuidado, muitas das vezes concluo que fui enganado, enquanto sonhava, por nefastas ilusões. Absorvo-me neste pensamento, e vejo tão manifestamente que não há indícios conclusivos que me permitam distinguir a realidade social da suposta realidade criada pela minha razão. É talvez o maior dos perigos de ter uma imaginação extravagante, bizarra e independente. Com ela deixamos de fazer uma corriqueira compilação e conjugação de elementos para começarmos a inventar qualquer coisa tão nova que nunca vimos nada igual. Algo que nos persuade e nos faz acreditar nisso..