Venho-me apercebendo que recebi umas tantas opiniões falsas como sendo
verdadeiras e de que aquilo que desde então fundei sobre princípios tão mal
assegurados só podia ser muito duvidoso e incerto; de modo que é necessário eu
desfazer-me de todas as opiniões que havia recebido e formado até então na
minha crença, e recomeçar tudo de novo a partir de novos fundamentos. Aplicar-me-ei
seriamente e com toda a liberdade a destruir genericamente todas as minhas
antigas opiniões. Ciente, que o desmoronamento dos fundamentos acarreta necessariamente
o resto do edifício, começarei por atacar os princípios em que todas as minhas
antigas opiniões se apoiavam. Fica uma certeza: os sentidos são enganadores e é
do domínio da prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma
vez. Todavia, embora os sentidos por vezes nos enganem, no tocante a coisas
pouco sensíveis e bastante afastadas encontram-se porventura muitas outras de
que não se pode razoavelmente duvidar, embora conheçamos pelo seu meio.
Com o
receio de um dia deixar ser dominado pelo cérebro perturbado e ofuscado que
continuamente nos assegura que somos reis, quando na verdade, somos
paupérrimos. Pensando com cuidado, muitas das vezes concluo que fui enganado,
enquanto sonhava, por nefastas ilusões. Absorvo-me neste pensamento, e vejo tão
manifestamente que não há indícios conclusivos que me permitam distinguir a
realidade social da suposta realidade criada pela minha razão. É talvez o maior
dos perigos de ter uma imaginação extravagante, bizarra e independente. Com ela
deixamos de fazer uma corriqueira compilação e conjugação de elementos para
começarmos a inventar qualquer coisa tão nova que nunca vimos nada igual. Algo
que nos persuade e nos faz acreditar nisso..
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